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Uyuni

Por Lincoln:
Chegamos em Uyuni no meio-dia, foi uma viagem rápida. Cidade cheia e movimentada. De início já fui percebendo o domínio dos 4x4 manga larga, muitos com snorkel, alguns com pneus 50% off-road, outros com bagageiros e galão de combustível extra. Eu já tinha entendido que o snorkel era para as épocas de degelo quando aqueles leitos secos ficam cheio d`água e não há muitas pontes nos povoados mais simples.
Fomos direto conhecer uma opção de hostel. Em seguida fomos na praça central caminhar e almoçar. Depois seguimos confirmar em terreno as informações que tínhamos levantado em pesquisa como preço de combustível, horário das excursões pro salar, etc. Também fomos ao mercado comprar frutas, pão e folha de coca. Fizemos câmbio e fui numa loja de ferragens comprar um galão de 20 litros pra combustível, pra me sentir mais incluído entre os locais...rs.
Tínhamos uma idéia (dica de relatos de internet) de ir até uma cidade 20 km adiante, chamada Colchani. Seria para adiantar a entrada no salar. Mas descartamos esse plano quando descobrimos o preço. Em seguida fui abastecer o carro e meu galão de 20 litros com aquele preço pra estrangeiro (3x mais caro). Então fomos para o hostel passar a noite. Fizemos janta e ficamos lendo um guia de viagens na Bolívia brasileiro que estava no acervo desse hostel.
Dia 9
Após o café da manhã, um pouco melhor nesse hostel, fui pegar o carro no estacionamento e me preocupei com a dificuldade que o carro teve para iniciar o motor. Estava uns -3 C.
Era mais um belo dia de sol e o plano era ver o movimento dos jipes de turismo rumo ao salar. Percebemos que o plano tinha começado a dar errado quando estávamos na última rua antes de subir de fato no salar, pois não viamos mais nenhum jipe, nem da frente nem atrás. Mas não nos preocupamos muito, afinal sabíamos que iríamos encontrar boas pistas no chão, além de mapas e rotas offline nos celulares. E as rotas no GPS que mais ajudaram no começo pois as marcas no chão estavam indo pra todas as direções.
Logo essa multiplicidade de caminhos foi reduzindo e fui conciliando oque o GPS me apontava com oque eu via no chão. Mais um pouco e o caminho no salar começou a oscilar entre um único caminho e sem caminho visível. Mas ainda estava tranquilo pois comecei a adquirir confiança na medida que o GPS ia sendo confirmado com pistas como, além do caminho que às vezes aparecia, um ponto fixo no horizonte que foi se confirmando nossa primeira parada e 1 ou 2 jipes que acabaram aparecendo na mesma direção nossa.
Chegamos no hotel que fica no meio do salar. Curioso mas nada de mais. Já seguimos rumo a ilha Incahuasi. Chegamos em poucos minutos também. O terreno parece, a forma como a gente sente ele com o carro, uma estrada de paralelepipedos: muito duro, estável mas barulhento. Eventualmente aparecia um buraco. A visibilidade era difícil pois tudo muito branco e brilhante. Então em algumas partes dava pra pegar uns 90 km/h com certa tranquilidade. Passei um pouco disso só pra experimentar pois também queria economizar o diesel.

A ilha é bem exótica por estar no meio daquele plano branco sem fim. Mas não vi nada de mais nela, além de cactos e pedras. Logo seguimos novamente. Contornamos uns 110 graus nela e aprumei a nave branca na direção sul daquele "mar" alvo.
Fizemos mais uma parada, agora no meio daquele vazio, sem nada por perto, pra conhecermos um pouco mais do detalhe daquele curioso chão de sal. De volta ao jipe, a percepção do caminho no chão foi ficando cada vez mais difícil. Mas seguindo uma pista ainda visível comecei a derivar bem lentamente para a esquerda da rota do GPS. Diferente da primeira metade, dessa vez o caminho foi ficando bem difícil de conciliar pistas e rota GPS. A melhor referência que eu tinha passou a ser uma costa com uma montanha que começou a me acompanhar pela direita. Pelo mapa eu sabia que ela tinha que estar ali mesmo. Mas a saída do salar era pra frente. E pra frente só piorava: começou virando um emaranhado de marcas de pneus em todas direções, pra frente oque se via de suspeita de terra firme ainda parecia longe, quando eu tentava ir na direção pra realinhar com a rota do GPS, o chão piorava, começou a surgir água e ficar macio. Reflexo imediato de jipeiro foi ligar a tração nas 4 rodas, não parar por nada e segurar a rotação e torque do jipe num nível seguro de resposta. Nessa alturas já tava voando salmora no pára-brisas que virou uma nháca. O jipão parecia um bicho acuado, andando em zigue-zague procurando a saída. A Ju não entendia muito que eu tava fazendo....acho que meio que expliquei e a tensão só foi subindo. Ela ajudava a tentar enxergar um lugar menos fofo, ou com menos água. Teve uma hora que senti um chão firme e parei. Aí conversamos e ela sugeriu de tentarmos voltar um pouco. Assim fizemos algumas centenas de metros mas olhando agora por onde já tínhamos passado achei que não tinha futuro aquela tentativa. Fiz novamente a volta e parti pro tudo ou nada. Já via um patamar acima daquele atoleirão de sal. Mas o jipe também já estava sentindo cada vez mais o peso daquele chão.....já tava parecendo areia. E os último metros foram os mais com cara que a nave iria afundar. A adrenalina já tava nas alturas....segurei na rotação "toda cavalaria" e fui.....alcancei o barranco e tudo voltou a ficar leve!! Que cagaço!! Naquela noite tive que jogar a cueca fora....rs, bricadeira! Se atolássemos ali ia dar trabalho. Testei o chão depois e não tinha nada mais firme depois das primeiras camadas. Iria ser a lógica de areia mesmo: afundar até ancorar tudo. Eu tinha um material pra esses trabalhos mas não tinha guincho nem pranchas.
Seguimos pela abençoada estrada de terra, em busca dos novos objetivos de mapa: Colcha K. Paramos pra perguntar (a Ju me obrigou a parar pra perguntar....eu não iria parar por bem pra perguntar....rs) o caminho pois as sinalizaões eram raras e o GPS tava me atormentando com sucessivos travamentos. O senhor que falou conosco me sugeriu lavar o carro primeiro, e me disse onde faze-lo, e também já disse o caminho que deveríamos seguir. Ótima dica. O carro tava uma meleca de sal seco. Era uma rampa com mangueira: luxo no meio do deserto. Fiquei ali lutando com o vento, gelando a mão e insistindo com o jato de água por baixo do jipe principalmente.
A Ju voltou deslumbrada que tinha conhecido um super hostel, cheio de quartos aquecidos, espaçosos....eu achei que tinham dado algum alucinógeno pra ela, pois só tinha taperas por ali. Depois ela me mostrou as fotos....rs. Ela queria ficar por ali. E como ainda era cerca de 14:00 horas eu achei que tínhamos que avançar no mapa. Até aquele momento foram apenas uns 100 km! Muito pouco pra quem tem que percorrer 500 km em no máximo 3 dias.
Ela foi insistindo de pararmos e eu de seguirmos. Os nomes foram passando e aquele GPS me irritando....então propuz um objetivo que já estava perto: Chiguana. A estrada estava bem ruim e ventava muito. E ainda tínhamos que contornar mais um salar....é muita emoção.
Mas em termos de piso, até que não houveram mais desafios off-road nesse novo salar. Viamos passar muito longe (em outro caminho) um ou outro jipe. No horizonte já iamos percebendo oque parecia ser nosso destino.
Chegando lá, pasmem, era uma cidade abandonada! Nem telhado mais tinham nas pequenas paredes ainda de pé. Fomos circulando pela única rua da cidade até o fim, com esperança. Já eram 16:30 horas.... Parei no fim da cidade, na frente de uma base militar que parecia ter alguma presença humana. Na guarita não tinha niguém. Até que apareceu um rapaz. Expliquei rapidamente que estávamos procurando uma hospedagem. Ele fez um silêncio e uma cara como se dissesse "vocês estão loucos". Ele explicou que pra frente seriam mais de 3 horas até o próximo lugar com habitação. Sugeriu que voltássemos pra cidade anterior (San Juan). Voltei pro carro e expliquei pra Ju a nossa situação. O sol baixando, o vento levantando poeira e o frio entrando.
Quando iamos saindo apareceu outro rapaz. Se apresentou como comandante daquele quartel. Se justificou, algo que eu não entendi, do porque estava sem a farda. Ele veio oferecer de ficarmos num prédio abandonado dentro do quartel dele e nos convidou pra conhecer. Disse que uns dias atrás já tinha cedido o espaço pra um ciclo-viajante francês. Era um pequeno salão em forma de semi-esfera. Ao entrar nesse lugar senti muita robustez (isolamento e inércia) térmica, que ali nossas chances contra o frio eram boas. Ele explicou que não teríamos banheiros....nem mesmo uma "casinha" como dizemos no Brasil. Decidimos ficar, montar a barraca dentro desse salão e trazer todo nosso arsenal de saco de dormir e cobertas. Comida tínhamos também. E assim começamos a desembarcar os equipamentos. Só que não.... nessa hora me passou um pressentimento ruim, e em seguida me passou outro "dizendo" pra eu não ignorar o primeiro pressentimento. Informei a Ju pra voltar as bagagens pro carro que não iríamos ficar ali, nem que tivesse que rodar 43 km pra trás.
Voltei fazendo as contas de quantos litros de diesel eu tinha perdido naquele erro. Quanto ao caminho, eu já estava ficando craque. Chegamos em San Juan e começamos a busca naquilo que parecia ser mais uma cidade fantasma. Mas não era. Todo mundo estava recolhido e com tudo fechado por causa do vento frio. Era só abrir as portas que achava pessoas. Fomos numa mercearia e conseguimos a informação de uma hospedagem. Procurando por ela conhecemos um jovem francês viajando de bicicleta! Tomando poeira e vento frio na cara numa boa, e também procurando lugar pra ficar. Compartilhamos a nossa informação previlegiada com ele que topou nos seguir até o local.
Era uma hospedagem bem simples, sem aquecimento, mas com muitos cobertores na cama. A casa estava cheia. Maioria europeus. O banho de pouca água quente foi meio dureza. Mas a janta com sopa e um longo bate-papo com nosso novo amigo ciclista foi bem agradável. Nessa noite fez -9 C.
Dia 10
Bom, devido às experiências excessivamente emocionantes do dia anterior, logo após o café da manhã comecei a tentar uma aproximação com os guias que estavam carregando os carros com bagagens e aqueles turistas europeus, pra tentar obter informações pra onde eles iam, como era o caimnho, etc, mas pareceu que eles não gostaram da minha sondagem. Jeito então foi ligar o GPS e seguir com a missão solo mesmo.....eu e minha Ju resiliente.
Percorri de novo aqueles malditos 43 km repetidos e passamos reto por Chiguana avistando um jipe alguns momentos. O caminho foi longo e pedregoso, com bifurcações pra começar a me assombrar de novo. Pelo menos, como eu havia saído do planos salares, as referências de montanhas restringiam bastante o risco de se perder. Era só ficar cruzando as referências de navegação constantemente. Mesmo confiando no que estava fazendo, havia um desconforto...
Passamos por um grupo de de uns 4 ou 5 cicloviajantes que logo viraram variável de verificação de navegação: eles não dormiram ali, então nessa hora da manhã eles não pedalaram de muito longe; as marcas dos pneus deles estão nessa trilha; essas marcas foram feitas agora de manhã, então o jipe que vi hoje cedo não passou por aqui.... E assim vai, pista por pista.
Cerca de umas 11 horas da manhã estávamos terminando de passar um campo de erosões muito peculiares, que pareciam pedras líquidas, e começando a ver trânsito de uma rodovia, de terra, que estava no nosso caminho! Um pouco de paz...rs. Era a rodovia boliviana 701 que liga Uyuni a Ollagüe. Vi e "cobicei" caminhões de combustível....rs. Alguns poucos minutos na rodovia, sentido Uyuni, paramos no tal mirante do vulcão Ollagüe.
Havia movimento de pessoas, jipes de guias e seus turistas, fumaça de refeições, artesanato.... uma alegria ver aquele movimento....rs. Desembarcamos do carro e nos separamos com a missão de obter informações do caminho adiante, tipo, dificuldades, estado da trilha, hospedagens, tempos, etc. A Ju foi nas bancas de comida e eu novamente fui abordar guias/motoristas daqueles jipes cheios de galão de combustível. Dessa vez os guias foram mais simpáticos e logo foram liberando as informações ao mesmo tempo que comiam algo. Perguntei se iriam até a fronteira pelo Parque Eduardo Avaroa e a distância. Eu estava muito receoso se eu teria combustível suficiente já que no dia anterior eu tinha desperdiçado cerca de 8 litros, quase metade do meu galão de 20. Ali eu estava pensando abortar o plano de sair pelo parque, já mais perto de San pedro do Atacama, e sair para o Chile pela rodovia, oque provavelmente me garantiria não ficar sem combustível no meio do deserto. Insisti no assunto quilometragem e ritmo da estrada, pra estimar se o diesel daria. O pessoal, já uma roda de guias, me encorajou "ah, dá sim, você tem combustível suficiente..." sendo que todos estavam de gasolina, ou seja, não poderiam me ajudar com alguns litros cada um.... A Ju apareceu com um sanduíche delicioso. Não sei do que era. Então, enquanto um dos guias ostentava combustível enchendo o tanque do jipe dele com um galão, eu dei minha cartada final: "posso seguir você?" O Elian deu um sorriso e logo respondeu "claro, sem problema"!
Maravilha! Dali em diante me libertei de um fantasma pra me aprisionar em outro....
Rota, bifurcações, GPS travando, referências pra navegação, se perder....nada disso mais me preocupava. Agora oque me preocupava era não ficar pra traz daquela Toyota Land Cruiser vermelha. Enquanto o terreno era bem trabalhoso de onde-pôr-cada-roda-do-jipe (erosões, carreiros fundos, pedras e degraus) tava tranquilo pois meus pneus grandes, carro leve e suspensão alta ajudavam, enquanto a Toyota ia lenta. Mas na hora que ficavam somente as "costelas", o Elian "sentava" o pé no jipão dele. Ahhhh, e como tinham "costelas"... Claro que existe a velocidade ótima pra costelas, que não é lenta, mas não deixa de estressar o jipão. Aí comecei a ficar vidrado na busca por marchas altas, já que teria que correr mesmo e pro diesel render, e onde colocar o pneu pra pegar menos costelas possíveis. Isso tudo a 50, 60 ou 70 km/h, com muita poeira no vidro e por horas contínuas. O jipão vibrava, parecia que eu tinha uma britadeira a bordo! Volta e meia eu olhava a paisagem que era outra alucinação!
Iamos acumulando metros de altitude, já bem além dos 4.300 metros dos dias anteriores, paisagens diversas, terrenos incríveis... Vi rampas de tamanho que nunca tinha imaginado existir: dezenas de quilometros de largura, se é possível estimar, que subíamos por muitos minutos e parecendo ir rumo ao céu mesmo, pois não se via nada além delas: ou iam pro céu ou caiam num abismo.
Então começaram a aparecer as lagoas coloridas!

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